Os biocombustíveis e a correção da injustiça

Observador 15-09-2022

Um dos efeitos da guerra lançada pela Rússia à Ucrânia foi o de colocar no topo da agenda política europeia e nacional os temas relacionados com a energia, em particular o gás e a eletricidade, cujos preços se tornaram uma preocupação central no orçamento das empresas como das famílias e levaram já à promulgação de medidas extraordinárias de compensação, como muito recentemente foi anunciado.

Menos atenção na opinião pública, no entanto, se tem dado a uma outra dimensão do setor energético, igualmente relevante para a nossa Economia, e que se relaciona com o mercado nacional de biocombustíveis, cujo desequilíbrio entre importadores e produtores nacionais aliado aos efeitos de um desvirtuamento do sistema regulatório levanta sérias questões ambientais e, mesmo, de concorrência.

Ao nível da União Europeia, está atualmente em discussão uma proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à disponibilidade de determinados produtos associados ao flagelo da desflorestação e da degradação florestal. Na lista desses produtos encontram-se diversas matérias-primas, destacando-se entre elas o óleo de palma e seus derivados. Para os legisladores europeus, o óleo de palma é um dos produtos cujo rastreamento deve ser reforçado incluindo a obrigatoriedade de uma declaração da qual conste o “País de produção e todas as parcelas de terreno de produção, incluindo as coordenadas de geolocalização”, para além do nome e endereço dos operadores e “em caso de produtos de base e produtos derivados em causa que entrem e saiam da União, o número de Registo e Identificação dos Operadores Económicos (EORI)”.

A confirmar-se, esta alteração regulatória viria de encontro à necessidade de tornar transparente uma situação que tem primado pela opacidade. Com efeito, o enquadramento legal vigente no nosso país está a estimular as importações de biocombustíveis já incorporados, dos quais perto de 60% têm origem em matérias resultantes da produção de óleo de palma. Algo contrário do que é pretendido a nível europeu no combate à desflorestação e em defesa do ambiente.

Mais ainda, em janeiro de 2021, o CIEC (Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo) passou a integrar a isenção de ISP para os biocombustíveis produzidos a partir de matérias-primas “avançadas” e, nessa mesma altura, o Decreto-Lei n.º 8/2021 passou a considerar matérias-primas “avançadas” os cachos vazios dos frutos do palma e o POME (palm oil mill efluent).

Foi esse mesmo Decreto-Lei que determinou a separação entre “produtores”, designação que passou a ser aplicada apenas a fabricantes sediados em Portugal e “importadores”, estes sujeitos a um conjunto muito menor de obrigações e de controlo, ignorando-se quem realmente fabricou.

Como consequência desta conjugação de decisões legais, as importações que historicamente pouco excediam, em 10%, o total introduzido no nosso mercado, ascenderam a 39% em 2021 e subiram mesmo para 46% no 1º trimestre de 2022.

Para termos uma ideia, em 2021, mais de 72.000 m3 dos biocombustíveis importados beneficiaram de isenção de ISP (e, destes, cerca de 45.000 m3 tiveram origem em matérias sobrantes da produção de óleo de palma), sendo que só no 1º trimestre de 2022 esse número foi já de cerca de 25.000 m3, o que indicia uma duplicação dessa mesma origem.

O que esta situação demonstra é que a quota de importações está a crescer, sobretudo, através de produtos com origem na produção de óleo de palma aos quais é concedida a competitividade pelo benefício conjunto da dupla contagem e da isenção de ISP. Esta prevalência das importações é potenciada, não pela competitividade, mas pela concessão pouco seletiva de benefícios fiscais. Uma consequência da Lei atual, mas cujo resultado queremos crer não estaria nos objetivos do legislador.

A agravar esta situação, ocorre a importação de biocombustível com origem em óleo recuperado de terras de filtração. Este resíduo, quando obtido de acordo com as reconhecidas boas práticas de fabrico, ocorre na proporção de 1 para 1.000. Ora, em 2021, 24.900 m3 de biocombustível teve esta origem. No 1.º trimestre de 2022, já entraram 18.000 m3 com esta origem, a qual não será certamente europeia; mais de 40 milhões de toneladas de óleos excede largamente o consumo europeu global. Mesmo a Índia, país de origem de parte da matéria-prima em causa, apresenta produções anuais da ordem dos 25 milhões de toneladas.

Em suma, parece claro que Portugal, devido aos incentivos criados, está a ser o destino privilegiado de matérias-primas indesejáveis de culturas tropicais oriundas da Índia e do Sueste Asiático que, em 2021, conduziram a isenções de ISP de cerca de 36 milhões de euros e, no 1º trimestre de 2022, já perto de 10 milhões de euros.

Se queremos que Portugal caminhe para uma menor dependência energética e uma maior consciência ambiental e sustentável, é fundamental que a legislação portuguesa acompanhe a vontade dos legisladores europeus quanto à rastreabilidade do óleo de palma e que – em simultâneo – se reforce o papel dos produtores nacionais, cujo biocombustível não contém matérias-primas que contribuam para a desflorestação e a degradação ambiental e florestal. Os legisladores estão sempre a tempo de corrigir os efeitos indesejados da Lei, aperfeiçoando-a e ajustando a sua letra ao espírito que lhe deu origem. Desejavelmente, quanto antes. Como se diz em juridiquês: Periculum in mora. Ou seja, há perigo na demora.